domingo, 8 de janeiro de 2012

Zé Diogo ou O Coisa

Dizem, sem mentira nenhuma. Ele surgia, babante, troncho e cheio de dentes, nas noites de lua cheia: botava medo no ar e esbaforia a animalada a galope desesperado noite adentro.

Naquele tempo, a Barra era um grande chiqueirão comunitário. Acho que foi uma experiência comunista sem que ninguém conhecesse, ainda, o sentido dessa palavra. Se fosse um pouco mais tarde, certamente os militares teriam prendido, encarcerado e matado todos os pobres lavradores, por suspeitas de serem, assim, unha e carne com o pessoal da China e da Rússia. 

Não há mais quem possa esclarecer sobre a origem da idéia do chiqueirão comunitário e nem sobre como ele foi surgindo. Da China, da Rússia ou do Araguaia, ela não pode ter vindo. 

Não há textos e nem mapas do chiqueirão. Hoje, temos somente os sinais do traçado de seus contornos, por meio das valetas que ainda restam cobertas de mato e de pastagens. O chiqueirão era formado por pedaços de terra de cada morador, formando um vasto espaço para uso da comunidade, dentro da qual viviam lavradores, porcos, cabras, galinhas, patos, burros e uma imensidão de pássaros cujo vôo trovejava e encobria a copada das árvores. 

Assim, a fartura existia demoradamente. A passarada comia dos porcos e dos chiqueiros e todos tinham carne e toucinho o ano inteiro. As prendas não paravam de ir e vir pelas estradas, de uma casa para outra, sempre que matavam porco. Era comum um menino cruzar com outro na estrada, cada um levando, dentro de dois pratos emborcados e amarrados com alvos panos brancos, os mais saborosos nacos de carne: “minha mãe mandou pra senhora”. 

Foi nesse tempo – ou bem antes - que apareceu o Zé Diogo, uma criatura indefinida, meio porco, meio cão, meio gente agoniada e raivosa, rosnando e babando sangue nas noites de lua cheia. 

Nesse tempo, plantava-se muito fumo pelas encostas e grotas. O fumo era colhido, secado e amontoado nas salas e quartos. Depois, vinham as noites de “distala” de fumo. Distalava-se fumo até de madrugada e com frio de doer nos ossos. 

Às horas mortas, cada um voltava para casa, encolhidos, esfregando as mãos geladas, proseando e contando causos. 

Mesmo os mais descrentes nas histórias de alma de outro mundo e de assombrações, mesmo eles não deixavam de ter algum medo, quando se falava do tal Zé Diogo. Diziam que o cabelo arrepiava e coisas mais. 

Meu pai não acreditava em nada disso, mas contava coisas, para ele, sem explicação. Uma delas era o caso da inquietude pavorosa do bando de burros e de cavalos que transitava no chiqueirão de porco. Em certas noites, os animais corriam sem parar, indo e vindo da casa do tio Dito Pereira até a Barrinha, bufando, apavorados, como se alguma coisa os perseguisse pelo vento. Diziam que era o Zé Diogo. 

Meu pai duvidava da existência desse coisa penumbroso - alma penada ou o que fosse, cujo rancor rosnado era de breu, das profundas horas de agonia e perdição – mas também não podia explicar a aflição da animalada em pavorosa noite adentro. 

Quando isso acontecia, no outro dia os animais ficavam sempre juntos em um canto do pasto, ariscos, trocando as orelhas e, muitas vezes, com sal no peito: suor da galopagem noturna, na fuga do que não se sabia o que ou quem. 

Sabemos que isso são invencionices de um povo invencioneiro. Mas para que essas histórias de dar medo? 

Acho que é para treinar a coragem de enfrentar – não as feras e as assombrações – mas o homem mesmo - quando ele sobe ao poder e perde o sentido da ética e do zelo pelo bem comum. 

Genésio Fernandes
(Texto e imagem)