segunda-feira, 20 de junho de 2011

O caso do "qualidificador"e do "prumodi"

O CASO DO “QUALIDIFICADOR” E DO “PRUMODI”

Nas duas últimas semanas, o pau comeu. Alguns jornalistazinhos mal formados e certos pitibuls guardiões de regras gramaticais proferiram críticas histéricas sobre a obra, intitulada Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC, para a educação de adultos. Os bolsonaros simplificadores e prepotentes querem que, em linguagem, exista somente o certo e o errado deles.

Com essa certeza, pesam salvar a língua nacional, a moral e os bons costumes, como destinadores do direito e do dever de caça ao erro, desconsiderando as variedades lingüísticas do país. Essa gente é daquela espécie para quem a língua, mesmo na boca do povo, é um virgem pura cujo arranhão no hímen desqualifica e bota a perder a moça inteira, sua alma, sua famílias, sua descendência. Gente da Idade Média essa gente!

A pudibunda raiva dessa gente nunca desceu sobre os humilhantes salários dos professores e sobre as condições em que se encontram as escolas por esse país afora. Lendo sobre isso tudo, lembrei-me de que já fui vítima da humilhação por utilizar a variante herdada de meus pais nos grotões de Minas.

Eu era um menino magro e caneludo. Assim, me botaram o apelido de “Canela de sabiá”. Por muito tempo, não podia nem ouvir o canto do pássaro. Minha reação era imediata. Para me insultar, alguns meninos ousados diziam apenas: “escuta seu irmão...!?”. Bastava isso para eu ficar furioso.

Meu mundo era imenso e eu sabia do meu mundo e tinha um jeito só meu, só nosso para falar dele. Nossa palavra era sempre uma “palavramundo”: enxada era o cabo, o olho, a lâmina, o corte, o peso, os suores, a poeirinha rala na terra seca, o mato cortado, o corte no dedo, o tinir do aço bom, a batida na pedra nos dias chuvosos, o salário minguado e muito, muito mais do que isso tudo.

Um dia, voltei para casa como sempre voltava, mas, no outro dia, tudo mudou e não havia mais enxada, nada de roça, nada de pé no chão, nada de frio, nada de ralo café da manhã e nada de almoço na montanha às nove horas em ponto e fome maior que o mundo. Eu já estava na cidade.

Não conto os demais detalhes. Pulo para dentro de uma sala de aula com muitos alunos, lousa grande e bem preta, sala limpinha de chão brilhando de bem encerada. Cera poliflor, se não me falha a memória.

O professor era um holandês de muita sabedoria e dava muita atenção para os da frente, bem mais bem vestidos, bem mais falantes, alguns com esses bem nítidos nas pontas das palavras. Falavam coisas cujo significado eu lutava para traduzir, pois a frase deles me parecia que era e não era aquilo que era e em que eu estava pensando... Então, entraram numa conversa sobre vitamina.

Agucei os ouvidos porque tinha ouvido falar que era uma bebida saborosa, feita com um aparelho que fazia tudo virar líquido de uma gostosura sem par. Alguns meninos estralavam a boca, falavam de seus gostos, das vitaminas disso e daquilo, cada uma mais gostosa do que a outra. E quando disseram que haveria vitamina de tomate no recreio, fiquei abismado. De tomate!? Nunca tinha imaginado beber tomate.

Animado com aquilo tudo, resolvi me meter. Minha carteira ficava bem mais lá atrás, quase me escondendo. Curvei um pouco para o meio do corredor e levantei o dedo. Demorou um pouco para o professor me dar vez e voz, tanta gente estava na frente com direitos bem maiores do que os meus. Então ele disse sim e eu falei:

- “Só prumodi eu intendê: vitamina num é feito com qualidificador?”

A sala veio abaixo. Riram muito e tanto que eu me encolhi. E o pior foi que o professor deu espaço para mais zombaria e, depois de um ar de riso ordinário, fez-se em bondade rápida, dizendo que sim, enfatizando a palavra liquidificador e desmerecendo o meu “prumodi”. Tudo ficou sem graça e mesmo dolorido e eu pensei em sumir dali. Saímos depois para o recreio.

Então lá veio a vitamina de tomate – coisa intragável do que me distanciei por muitos anos, desmerecendo todos os “qualidifcadores” e liquidificadores existente no mundo e para lá do mundo.

A humilhação nunca me ajudou a amar e a aprender a língua, a leitura e a escrita. O que me ajudou muito foram algumas circunstâncias cheias de liberdade e de vida que me levaram a escrever carta, diário, texto para o jornal de minha sala e poemas românticos. Trabalhar no teatro da escola foi outra coisa que me deu segurança, desenvoltura. Ah! Maria Inês, meu doce amor impossível! Quanto de análise sintática eu aprendi medindo e pesando e apalpando as frases das demoradas cartas que te escrevia, com um coração mais quente do que o sol que só vai apagar daqui há cinco bilhões de anos!

Ah professor! Estávamos em 1960 e acho que o senhor nem conhecia os poetas do Modernismo brasileiro de 1922 e o valor que davam à linguagem popular como matéria de poesia! O senhor e alguns engraçadinhos daquela minha sala já morreram e eu lamento, porque ajudaram a me constituir como gente, mas, mesmo assim – “oceis tudo vai peidar nágua!”

Genésio Fernandes